O cuidar interior
A importância do acompanhamento psicológico no processo da adoção tardia.
A presidente da ONG Aconchego e psicóloga Soraya Pereira.
Vídeo: Jéssica Ribeiro
Presidente da ONG Aconchego e psicóloga há mais de 20 anos na área de adoção tardia, Soraya Pereira, explica que durante o processo de adoção é de suma importância um acompanhamento psicológico para com os envolvidos, pois apenas dessa forma é possível que haja uma excelente preparação, no caso dos pais, e um melhor entendimento e trabalho para com os sentimentos dos menores.
No processo de adoção, é comum perceber nos pais uma criança “imaginada”, correspondente aos seus anseios e expectativas, revelando muitas vezes, o filho ideal. À adoção pode-se transformar em uma árdua tarefa, no sentido de absorver as diferenças em relação àquilo que é esperado em seu imaginário, como por exemplo, a falta de vínculo genético e fantasias em relação aos pais biológicos em sua forma e como personagens que podem voltar a qualquer momento para reaver o filho. Do outro lado, há uma criança que enfrentou muitas coisas em seu passado, que já possui um comportamento decorrente de sua história, mas que anseia ter um novo lar e uma nova família.
Estudantes de jornalismo: Quais as dificuldades mais frequentes observadas no relacionamento de pais e filhos adotivos tardio?
Soraya Pereira: Com toda certeza as expectativas. As outras dificuldade vem porque tanto a criança quanto os pretendentes possuem um passado, e essa bagagem se não trabalhada, impede a aproximação da criança para com os pais adotivos, e além disso, causa muitos atritos, muitas desilusões e muita raiva. Outro ponto que a gente fala é a linguagem.Quando uma criança entra em uma família, aquela família já possui uma certa estrutura, e essa criança tem que se adaptar a essa estrutura e essa linguagem de uma hora para outra, e para a criança que está chegando isso é bem frustrante. Vamos dizer assim,a criança começa a agir com muito cuidado porque tem medo de ser devolvida, na verdade nem é devolvida, na verdade é parar o processo, e não seguir em frente.Enfim, quando isso acontece, a criança começa a achar que ela é culpada. Outro ponto é o respeito à história daquela criança, porque tem muitos pais que não querem a história da criança e não tem como fazer isso, não tem como apagar o passado dela, faz parte dela e os pais adotivos precisam conhecer e lidar com esse ponto tão importante.
E.J: Como funciona o psicológico de uma criança ou adolescente que já tenha um passado, aceitar uma nova família?
S.P: Na prática a gente adota tudo, amigos, profissão, namorado, marido.... A gente vai adotando, mas não prestamos atenção nisso. No primeiro momento é muito encantador, depois é que vai aparecendo as histórias. A criança quando vem com um passado, não consegue e não pode negar esse passado, então isso precisa ficar muito claro, ela se forma com as vivências dela, ela se forma pelo "eu" dela. Com isso,não tem como simplesmente arrancar a história dessa criança, pois é a vida dela, né, faz parte dela. E os pais precisam saber que haverá comparações, porque se nós que não passamos por metade do que essas crianças passam, também comparamos, imagine elas, é até uma forma de defesa delas para saber se algo vai acontecer novamente. Só que nesse processo de aproximação e de filiação, as pessoas têm muita tendência a achar que a criança precisa agradecer e a criança não precisa ser agradecida, ela tá entrando nessa família porque os dois têm desejo. Então, essas crianças possuem uma história sim, e essa história de vida dela vai colocar ela em algumas situações de lembranças em algum momento, em algumas situações de vivência muito forte que pode deixa-la triste, mas o ponto é deixa-la se libertar e não manda-la esquecer, pois isso é impossível.
E.J: Qual a importância dos pais adotantes passarem por um processo de preparação antes de realizarem uma adoção tardia? E como isso funciona?
S.P: Existe a lei 2009/2010. Essa lei exige que os pretendentes passem por um curso de preparação e no Brasil inteiro não pode ter um pretendente à adoção que não passe por esse processo. Em Brasília, esse curso foi trazido por nós da ONG Aconchego, antes mesmo de ser obrigatório por lei. Iniciamos porque começamos a perceber que estava havendo devoluções de criança, desistência do processo de adoção, pois muitas pessoas não estavam preparadas. Ouvíamos muitas coisas dessas pessoas, como por exemplo, eu levei no McDonald's ele rasgou a sacolinha, então não posso criar uma criança mal educada, eram muitos absurdos porque as crianças vão rasgar a sacolinha, vão quebrar algum brinquedo, certo? Afinal, são crianças. Mas a exigência é muito grande por parte desses pretendentes, pois muitos acreditam que tem que ser aquela criança quadradinha, formatada e não é assim. Por conta disso, começamos a fazer um curso que não era obrigatório e junto com isso nós criamos o grupo “Adoção Tardia” mas depois de um tempo deixamos de realizar esse curso e hoje em dia só a Vara da Infância e da juventude realiza. O Aconchego hoje possui dois grupos, o primeiro que funciona com encontros quando a pessoa não entende nada mas está pensando em adotar, que é o "encontro" , e também tem o “Laços” que é como um grupo de apoio para pessoas que já adotaram uma criança. Então, é extremamente importante ter esse conhecimento e a gente tem que sair da ideia de que a adoção é só amor, pois não é só isso, também é conhecimento e mudança de cultura.
E.J: Como que fica o psicológico de uma criança quando existe uma desistência do processo?
S.P: Um estrago, porque a criança não consegue entender que as coisas acontecem porque acontecem e são vários fatores para chegar nessa situação. E a tendência é sempre a criança achar que ela é culpada por essa desistência do processo, e não é. Essa criança que voltou para o abrigo, fica mais arredia, muito angustiada, muito irritada, fica com uma agressividade muito grande, porque se a gente for pensar, é o término de um namoro, de um relacionamento, é um luto, uma morte.